segunda-feira, 24 de junho de 2013

Memória




 Abro a janela sobre uma paisagem de cartão postal, com cores que respiram amor e saudade. Uma fotografia da minha juventude.
Na torre da igreja, aqui em frente, repouso de pássaros e pombos que se espantam com o floreado do som dos sinos. Há certas memórias que são partes da gente, nessa igreja Nossa Senhora de Lourdes foi à casa de Pe. João Maria, o santo e grande homem que ninguém esquece seu apostolado. Outro padre, Pe. Eimard  Lereste Monteiro  construiu essa igreja, de pedras, cimentos, tijolos, cal e festas com concurso de rainha do cordão encarnado e azul. Graças à ajuda de todos os natalenses daquela época foi possível terminar a construção que durou meio século. Aí está uma parte de mim, que vaidosa e feliz fui à rainha do cordão encarnado. Memórias que são pedaços de uma historia que me tocam com alegria e dor, mistura que se faz saudade.
Logo atrás da igreja, vemos o verde e os telhados de “Mãe Luiza” – restos de amor guardado como enfeite de ouro, atado dentro de mim, virando estrela da minha solidão.
Na esquina, à direita, é a imensidão do mar, sempre com seus azuis fortes e seus verdes que nunca repetem seus matizes, cada dia com seu verde e com sua verdade.
O mar! Meu namorado sedutor, belo e perigoso, característica de todos os grandes sedutores.
  


                        

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Destino



Mia Couto

À ternura pouca 
me vou acostumando 
enquanto me adio 
servente de danos e enganos 

vou perdendo morada 
na súbita lentidão 
de um destino 
que me vai sendo escasso 

conheço a minha morte 
seu lugar esquivo 
seu acontecer disperso 

agora 
que mais 
me poderei vencer? 


quarta-feira, 5 de junho de 2013

No tempo em que se falava de amor




SANDERSON NEGREIROS
Chegas assim, tênue como a chuva dançarina, irradiando a bondade natural e eleita, consumindo nos caminhos a persuasão das auroras, instigando o sono das ervas silvestres, meditando um longo crepúsculo à beira de um gesto de repouso. Chegas assim, destruindo a atribulada definição de existir, e em ti posso calcular a distancia entre o nascimento e a morte. És um arco que une as diversas linhas imaginarias do sonho, as latitudes poderosas do silêncio que demarcam os tons azuis do planeta. Ah como seria belo contemplar a Terra vista da Lua, e saber que tu formas um pensamento de energia pura, em meio à vastidão da beleza cósmica, captável dessa perspectiva; e, assim, nunca te olvidar, mesmo em meio a mais de seis bilhões de pessoas que habitam o nosso astro iluminado, humildemente aceso pelas luzes belíssimas da Via Láctea, a materna galáxia.
A beleza dói em teus olhos; fere a longa clorofila das campinas. Apascentas o coração do companheiro, e amo-te desde que ti vi, na praia, com uma onda buscando tocar teu braço. Força é não esquecer que caminhavas, sozinha, quando o sol construiu um arco-íris para que ficasses alegre; e irradiou um eclipse para que o perfil de teu rosto não se perdesse no desdobrar dos horizontes tardios.
A meiguice com que pronuncias a palavra da doce paixão tem o cantar unânime de mil pássaros na floresta negra, na hora em que eles cantam com a mesma claridade  com que o vento começou a existir no inicio da criação. Escutavas, antes mesmo de qualquer música, o silêncio. Aí, criaste o som, e com ele a parábola entre dois corações, que se buscam a interromper a distância de  continentes longínquos. O som anônimo, oculto, inaudível, age com a mesma intensidade da estrela que nasce. Dei a ti, na oferta de um pequeno reino,  estreito como o esquecimento, as calçadas do mar, a curva dos horizontes e a pureza dos regatos, ao amanhecerem no presságio de mais um dia a vagar, molhado por orvalho ensurdecedor. Haverás de receber  minha lembrança que chega a ti, sem pedir licença ao acaso, e generosamente procuras aumentar as palpitações do coração do mundo. Cortarás o céu da noite, que me permite o sonho e a realidade, e foges na cabeleira de um cometa, a descobrir o caminho que nos transporta e nos dá a única possibilidade de fazer a ponte entre o visível e o invisível – mesmo que para isso sejam  necessários anos-luz de paciência e solidão. Por tudo isso, eu queria escrever , hoje à noite,  a carta de amor mais bela. A que feita e escrita, não fosse: cantasse apenas uma canção inesquecível.  É a carta a que me proponho desde a infância; poema que foi a força de minha adolescência e o sinal de minha juventude. Hoje, à noite, queria escrever a carta que nada dissesse, que nada revelasse; fosse intima como o segredo do vento – e marcada como os punhais invejáveis que, no crepúsculo, cortam o horizonte.  
Queria encontrar um poema, que da minha lembrança revelasse a aparição da aurora; dissesse a quem amo, que só em saber que ela existe, continua o seu viver a dar  razão à vida; que um simples gesto seu comove as pedras da aflição, rasga as vestes da lucidez, aumenta a perspectiva do sonho, engrandece a longitude da minha alma. Queria que esta carta de amor fosse calma como a solidão da água noturna, aprisionada em tanques abandonados, e mais: se constituísse em milagre, transbordamento, caricia de eterna vontade.
Nessa carta, a mão que a escreve traz a mesma força de outra mão de ternura de que se não esquece nunca – o rictus de seu lábio me fala as palavras que eu desejaria ouvi-las num ermo de luz e sombra. Queria que meu amor aqui se reconhecesse e dissesse: - É a mim que escreves. É por mim que te agitas, e teu pensamento avulta o solstício,  as estações inquietas do inverno e do verão, ao limitar o roteiro de rotação da Terra. Que essa carta fosse a mais bela e a mais real; que se perdesse, fosse reencontrada  pelos amantes, catadores do futuro. E os séculos nos dariam razão. Queria, nesta noite, um pouco do som dos corredores da infância a restituir a rara felicidade que possa restar da voz materna, a nos chamar de bem longe, muito longe.E descesse pelas claraboias um luar restituído pelo hino alvejado no canto dos noturnos pássaros dos quintais.
Assim, algum dia poderia  me sentir o homem mais feliz do mundo – porque amo as vastidões insuperáveis das paisagens – e tenho todos os motivos para reencontrar a canção perdida, e oferecê-la, com o silêncio de quem fiscaliza o mistério e apazigua o tumulto do silencio . Mesmo que os outros não possam perceber, esta será a carta mais inesquecível, somente porque tu existes e em ti posso descansar a fronte. Detidamente, com a paciência de um sábio ignorante que encontrou a simplicidade do mistério.