SANDERSON
NEGREIROS
Chegas assim, tênue como a
chuva dançarina, irradiando a bondade natural e eleita, consumindo nos caminhos
a persuasão das auroras, instigando o sono das ervas silvestres, meditando um
longo crepúsculo à beira de um gesto de repouso. Chegas assim, destruindo a
atribulada definição de existir, e em ti posso calcular a distancia entre o
nascimento e a morte. És um arco que une as diversas linhas imaginarias do
sonho, as latitudes poderosas do silêncio que demarcam os tons azuis do
planeta. Ah como seria belo contemplar a Terra vista da Lua, e saber que tu
formas um pensamento de energia pura, em meio à vastidão da beleza cósmica,
captável dessa perspectiva; e, assim, nunca te olvidar, mesmo em meio a mais de
seis bilhões de pessoas que habitam o nosso astro iluminado, humildemente aceso
pelas luzes belíssimas da Via Láctea, a materna galáxia.
A beleza dói em teus olhos;
fere a longa clorofila das campinas. Apascentas o coração do companheiro, e
amo-te desde que ti vi, na praia, com uma onda buscando tocar teu braço. Força
é não esquecer que caminhavas, sozinha, quando o sol construiu um arco-íris
para que ficasses alegre; e irradiou um eclipse para que o perfil de teu rosto
não se perdesse no desdobrar dos horizontes tardios.
A meiguice com que pronuncias
a palavra da doce paixão tem o cantar unânime de mil pássaros na floresta
negra, na hora em que eles cantam com a mesma claridade com que o vento começou a existir no inicio
da criação. Escutavas, antes mesmo de qualquer música, o silêncio. Aí, criaste
o som, e com ele a parábola entre dois corações, que se buscam a interromper a
distância de continentes longínquos. O
som anônimo, oculto, inaudível, age com a mesma intensidade da estrela que
nasce. Dei a ti, na oferta de um pequeno reino,
estreito como o esquecimento, as calçadas do mar, a curva dos horizontes
e a pureza dos regatos, ao amanhecerem no presságio de mais um dia a vagar,
molhado por orvalho ensurdecedor. Haverás de receber minha lembrança que chega a ti, sem pedir
licença ao acaso, e generosamente procuras aumentar as palpitações do coração
do mundo. Cortarás o céu da noite, que me permite o sonho e a realidade, e
foges na cabeleira de um cometa, a descobrir o caminho que nos transporta e nos
dá a única possibilidade de fazer a ponte entre o visível e o invisível – mesmo
que para isso sejam necessários anos-luz
de paciência e solidão. Por tudo isso, eu queria escrever , hoje à noite, a carta de amor mais bela. A que feita e
escrita, não fosse: cantasse apenas uma canção inesquecível. É a carta a que me proponho desde a infância;
poema que foi a força de minha adolescência e o sinal de minha juventude. Hoje,
à noite, queria escrever a carta que nada dissesse, que nada revelasse; fosse
intima como o segredo do vento – e marcada como os punhais invejáveis que, no
crepúsculo, cortam o horizonte.
Queria encontrar um poema, que
da minha lembrança revelasse a aparição da aurora; dissesse a quem amo, que só
em saber que ela existe, continua o seu viver a dar razão à vida; que um simples gesto seu comove
as pedras da aflição, rasga as vestes da lucidez, aumenta a perspectiva do
sonho, engrandece a longitude da minha alma. Queria que esta carta de amor
fosse calma como a solidão da água noturna, aprisionada em tanques abandonados,
e mais: se constituísse em milagre, transbordamento, caricia de eterna vontade.
Nessa carta, a mão que a
escreve traz a mesma força de outra mão de ternura de que se não esquece nunca
– o rictus de seu lábio me fala as palavras que eu desejaria ouvi-las num ermo
de luz e sombra. Queria que meu amor aqui se reconhecesse e dissesse: - É a mim
que escreves. É por mim que te agitas, e teu pensamento avulta o
solstício, as estações inquietas do
inverno e do verão, ao limitar o roteiro de rotação da Terra. Que essa carta
fosse a mais bela e a mais real; que se perdesse, fosse reencontrada pelos amantes, catadores do futuro. E os
séculos nos dariam razão. Queria, nesta noite, um pouco do som dos corredores
da infância a restituir a rara felicidade que possa restar da voz materna, a
nos chamar de bem longe, muito longe.E descesse pelas claraboias um luar
restituído pelo hino alvejado no canto dos noturnos pássaros dos quintais.
Assim, algum dia poderia me sentir o homem mais feliz do mundo –
porque amo as vastidões insuperáveis das paisagens – e tenho todos os motivos
para reencontrar a canção perdida, e oferecê-la, com o silêncio de quem
fiscaliza o mistério e apazigua o tumulto do silencio . Mesmo que os outros não
possam perceber, esta será a carta mais inesquecível, somente porque tu existes
e em ti posso descansar a fronte. Detidamente, com a paciência de um sábio
ignorante que encontrou a simplicidade do mistério.